O paraíso perdido do neoliberalismo
Antonio Luiz Monteiro Coelho da Costa
Em 2006, esteve no Brasil o islandês Hannes Gissurarson, integrante da diretoria do Banco Central da Islândia, professor de ciências políticas da Universidade da Islândia, líder do movimento libertarian de seu país e ex-vice-presidente da Sociedade Mont Pèlerin, organização neoliberal internacional fundada por Friedrich Hayek e Ludwig von Mises.
O professor é autor de Como a Islândia Tornou-se o País mais Rico do Mundo, livro de 2002 no qual desfia as maravilhas da transformação do país de social-democracia escandinava em centro financeiro global a partir do governo do primeiro-ministro David Oddson, iniciado em 1991. Foram liberalizados os mercados financeiros, privatizados as estatais e o sistema previdenciário e reduzidos os impostos sobre a renda de pessoas jurídicas (de 50% para 18%), seguindo o exemplo de Luxemburgo e outros paraísos fiscais europeus.
Com a palestra do cientista político islandês no Instituto Liberal, a ilha de 320 mil habitantes tornou-se para os seguidores tropicais da Escola Austríaca, a forma mais radical de neoliberalismo, aquilo que a Albânia fora para o PCdoB antes da queda do Muro de Berlim, ou Cuba continua a ser para parte da esquerda latino-americana: o farol da humanidade, o paraíso sobre a Terra.
Segundo um artigo do professor e do empresário Odemiro Fonseca, publicado no jornal O Globo de 29 de dezembro de 2007, a Islândia “era quase uma nação latino-americana no início dos anos 80, disfuncional como o Brasil. A inflação chegou a 100% em 1983, o déficit público a 6% do PIB, a dívida pública explodiu. (...Hoje), os islandeses têm liberdade de escolha impensável para os brasileiros. A sindicalização é voluntária. Se um pai quer colocar o filho na escola particular, o governo dá o dinheiro que gastaria na escola pública. Não existe nada da rigidez trabalhista brasileira. A liberdade cambial é total, o nível de desemprego é de 2%, o seguro-desemprego quase nunca é usado”.
A desregulamentação financeira permitira rendimentos mais altos aos bancos islandeses e atraíra da Europa, principalmente do Reino Unido e Holanda, depósitos de empresas, pessoas físicas, ONGs e governos locais, de modo que em junho de 2008 a dívida externa atingiu 120 bilhões de dólares – sendo 102 bilhões passivos externos dos bancos –, para um PIB de 16,5 bilhões e um orçamento nacional de 5 bilhões, a uma taxa de câmbio de 79 coroas por dólar.
Em tese, o governo islandês nada tinha a ver com a dívida dos bancos privados. Mas, quando os reflexos da crise hipotecária dos EUA reverberaram pelo mundo, a Islândia foi sacudida como casca de noz numa tempestade. A taxa de câmbio, de 62 coroas por dólar em fins de 2007, começou a disparar quando os investidores anteciparam o óbvio: o governo não teria como socorrer seus bancos quando falissem. Em 29 de setembro, o inevitável aconteceu. O Glitnir, terceiro maior banco do país, quebrou e foi estatizado, seguido dias depois pelos dois maiores, Landsbanki e Kaupthing. Os três somavam 180 bilhões de dólares em ativos e 62 bilhões em dívidas externas no fim do ano passado.
Obviamente, o governo islandês não tinha como garantir esses depósitos. Em 8 de outubro, desistiu de segurar o dólar em 134 coroas por dólar e, no dia seguinte, o câmbio saltou para 340, antes que esse mercado fechasse e acabasse de vez com a preciosa liberdade cambial.
Atendendo à pressão de 300 mil clientes britânicos furiosos, o primeiro-ministro Gordon Brown prometeu cobrir-lhes as perdas de cerca de 7 bilhões de dólares (inclusive 1,5 bilhão de governos locais) e congelou, na quarta 8, os ativos de bancos islandeses no Reino Unido, com base no Ato de Segurança Anti-Terrorista, instituído em 2001 contra a Al-Qaeda e o crime organizado. No dia 12, foi imitada pela Noruega, que reteve as posses do Kaupthing em seu território. Brown negocia agora um acordo similar ao dos Países Baixos, que emprestaram à Islândia o suficiente para indenizar até certo limite (20 mil euros) os pequenos depositantes holandeses.
Que os diretores dos bancos islandeses tenham sido equiparados a terroristas e mafiosos não foi a última das muitas ironias desse caso. O país “mais rico do mundo” viu-se sob os escombros do mais terrível colapso cambial desde a crise argentina de 2001 e disputa com Zimbábue o título de pior desempenho econômico global em 2008. Impôs aos credores um calote maior que o da Argentina, embora tenha menos de um centésimo da sua população. Sua moeda não é mais aceita no exterior e discute-se como substituí-la pelo euro.
O ex-paraíso neoliberal resiste a submeter-se ao FMI e sua maior esperança é o empréstimo de 5,5 bilhões que David Oddsson, hoje presidente do banco central, negocia com Moscou desde fins de junho. “Não recebemos dos nossos amigos o tipo de apoio que pedimos. Então, numa situação como esta, é preciso procurar novos amigos”, justificou o primeiro-ministro Geir Haarde. É possível que também alugue à Rússia a base aérea de Keflavik, que os EUA e a Otan abandonaram em setembro de 2006. E quem sabe se também Hugo Chávez não daria uma mãozinha?
Os efeitos sobre a economia real da Islândia ainda não podem ser avaliados, mas seus dias de paraíso fiscal acabaram. A Bolsa caiu 77% ao reabrir depois de suspensa por três dias. Boa parte das aposentadorias dos islandeses evaporou e o país voltará a depender da pesca e da indústria de alumínio e ferroligas. O PIB, que crescia a uma média de 4,5% ao ano na última década, deve cair mais de 10%, como o da Argentina em 2002. As famílias islandesas, ameaçadas de desemprego e endividadas em 213% de sua renda anual (ainda mais que os 140% das estadunidenses), têm um difícil futuro pela frente. Poderão meditar sobre o assunto lendo a nova edição do Manifesto Comunista em islandês, a ser lançada em novembro.
A desconversa neoliberal para a crise estadunidense e européia – má regulamentação, pressão do governo por empréstimos a devedores pouco confiáveis – claramente não se aplica. Os bancos tiveram liberdade para aplicar como bem entendessem. A dura lição para os investidores ingênuos e teóricos neoliberais é que a moeda, os bancos e o capitalismo de um país não valem mais que o governo que os garante. Mais uma vez, custou caro a ilusão de que o mercado é solução para tudo e o Estado é o problema.
Fonte: Carta Capital
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